"Feminismo para feministas: o resto que se dane" - reflexões sobre a Marcha das Vadias - CG

Por Carla Amaral 

Sábado, dia 10 de agosto, tivemos a II Marcha das Vadias de Campina Grande. Fomos às ruas para lutar por nossas causas! A escolha do modo de expressar nossa revolta e nossas demandas é muitas vezes um processo delicado, que envolve pensar a mensagem que queremos passar, a mensagem que queremos que os outros entendam e qual a leitura que as outras pessoas farão daquilo que expressamos (ou seja, como a mensagem será de fato ouvida e interpretada). 


De modo geral, a marcha foi lindíssima, tocante, repleta de amor e força. Voltei para casa mais leve e com a certeza de que não estava sozinha na minha militância.

Nessa Marcha das Vadias aconteceu, porém, uma cena “curiosa” que gostaria que fosse olhada a partir do que se propõe o feminismo e a própria marcha das vadias, tendo em vista suas causas de luta. De modo prático, o que aconteceu foi o seguinte: Foi feita uma boneca que representava a jornalista Sheherazade, tendo ela uma corda amarrada no pescoço e, pendurada a ela, foi pendurada uma placa na qual estava escrita “cale-se”; ao fim do percurso da marcha, a boneca foi queimada. Há um video desse momento e confesso que não tive saco para vê-lo por completo, mas entre as falas que pude ouvir na minha rápido olhada, foi possível captar coisas como: “Essa vadia”, “que morra. Queimada!”, “deixe queimar, tem que sofrer, tem que morrer”.   

Como última atividade do II Fórum de Feminismo e Direitos Humanos, facilitei uma roda de conversa que tinha como tema principal Sororidade*. A escolha desse tema se deu por eu acreditar que é impossível fazer feminismo sem empatia, sem respeito entre as mulheres e sem essa capacidade de se reconhecer na outra.

Quis ainda por em questão um discurso que se repete ad nauseum em Facebook e redes sociais afins que consiste em separar-se daquele grupo que passa a ser classificado como “o grupo que não presta”, consequentemente o grupo contra quem violência passa a não ser algo tão grave. Alguns exemplos seriam as divisões entre “mulheres” e “piriguetes”, “mulheres de verdade” e “mulheres para diversão” ou a versão hipster/descolada desse discurso com a divisão entre as “mulheres inteligentes” e as “mulheres burras”, e “mulheres diferentes” e “mulheres comuns”.

Essa busca por um bode expiatório, um grupo para dizermos “esse grupo x não presta e eu faço parte desse grupo y de mulheres, que são as que prestam” acaba sendo por vezes um discurso que é incorporado dentro do feminismo. E aí começa a acontecer um equívoco em relação a quem e a que serve o feminismo. Passa-se a acreditar que o feminismo defende pessoas que são feministas. E quem não o é está obviamente contra nós, não merecendo nosso respeito ou usufruir de nossas lutas e vitórias.

Temos então aqui um enorme equívoco.


Para quem é o feminismo, então?

O feminismo é, antes de qualquer outra coisa, a luta por ascender a mulher a uma condição de igualdade (ou equidade, que seria uma palavra melhor para falar sobre ver como iguais levando em conta que esses são diferentes e tem demandas específicas) ao homem.

Como foi muito bem falado durante o Fórum, não existe UM feminismo, mas VÁRIOS, tendo como ponto em comum essa premissa, mas podem abarcar mais ou menos coisas. Além disso, o feminismo não é algo que está dado, mas que é construído, desconstruído e reconstruído diariamente por nós que somos militantes da causa. Então estarei aqui falando obviamente do modo como eu vejo o feminismo.

Nesse sentido, o feminismo pelo qual eu milito luta em defesa das mulheres. Todas elas: brancas, negras, universitárias, prostitutas, trans*, cis, lésbicas, héteros, donas de casa, religiosas ou não e seja lá em quais rótulos ela se encaixa. Além disso, luta por aquelas “mulheres machistas”, as quais gostamos tanto de apontar o dedo e culpá-las por todos os problemas que são resultado de uma cultura machista e patriarcal. Luta pelas mulheres que concordam comigo, mas também por aquelas que me chamam de “assassina de bebês”, de “vagabunda”, “puta”, “mulher que não se dá o valor”, “desocupada”, e por aí vai. Minha militância leva em conta também aquelas mulheres que dizem odiar feministas e cujas opiniões eu considero completamente equivocadas.

Meu pouquíssimo tempo enquanto militante me ensinou que o feminismo deve também se preocupar com essas mulheres porque elas também são vitimas da mesma opressão da qual somos nós. Minha militância me ensinou a não abrir mão delas e estar aqui sempre que elas precisarem.

Essa posição, porém, não me torna menos crítica aos discursos emitidos por elas, mas me dá o entendimento de que ela é uma igual e que, sendo tão oprimida quanto eu e outras mulheres somos, não deve ser desconsiderada dentro de uma luta por respeito, igualdade de direitos e contra a violência. O feminismo também deve proteger a elas de toda injustiça que estiver a nosso alcance.


Pelo que a Marcha das Vadias luta?

Não vou aqui me ater a como a Marcha teve início. Até porque outras lutas foram incorporadas desde então, sendo relevante apenas dizer que ela começa contra a ideia de culpabilização da vítima em casos de estupro.

Dessa luta inicial, incorporam-se algumas outras, que de algum modo se ligam a essa primeira. Podemos aqui falar sobre o direito de escolher quando e com quem transar, de que forma, não ter outras áreas de sua vida julgadas de acordo com seu comportamento sexual, o entendimento de que você transar com muitas pessoas não significa que você transe com qualquer um (“Se liga no papo, vê se para de gracinha. Eu dou pra quem quiser que a porra da buceta é minha!”, lembram?).

A partir da ideia sobre autonomia sobre o corpo, luta-se pelo acesso à educação sexual de qualidade, acesso a contraceptivos e direito ao aborto, sendo esse direito pensado através das noções de estado Laico, de modo que nenhuma religião pode impor sua crença e suas morais aos nossos corpos, que são nossos e laicos (“ô papa, vou te dizer: existe aborto independente de você! E fica aí de bla bla bla mas as mulheres estão morrendo ao abortar!”).

Luta-se ainda contra qualquer forma de violência contra a mulher (“a violência contra a mulher não é o mundo que a gente quer”), e para que a mulher possa ocupar espaços que antes eram a ela negados, para que tenha voz e seja ouvida, mesmo que use esses espaços para emitir opiniões com as quais não concordamos e que contribuem para a manutenção de uma cultura opressora.

Sim, mas e aí?

A partir disso, é importante repensar pra quem é nosso feminismo e que tipo de mensagem estamos passando. Considero paradoxal que, numa marcha contra a violência contra a mulher e a favor da liberdade de expressão das mesmas, haja performances como essa. Eu entendo que a intenção era atacar o discurso Sheherazade (que com toda certeza merece ser atacado), mas em uma rápida olhada na descrição do que aconteceu e no próprio vídeo é possível perceber que não foi exatamente assim que as coisas foram colocadas. É preciso repensar e rever os modos como escolhemos protestar e contra quem direcionamos nossa agressividade.

Torno a dizer: é um equivoco acreditar que o feminismo é uma luta contra quem não é feminista. A Marcha das Vadias é contra a violência e o silenciamento das mulheres. De todas elas. Inclusive aquelas com as quais não concordamos.


* Sororidade vem do latim, soror, que significa irmã. sororidade é, em termos, a irmandade entre mulheres.

2 comentários:

San Vilela disse...

Ótimo texto, Carla!

Mabel Dias disse...

AGORA A GENTE SÓ PRECISA COLOCAR EM PRÁTICA! PARABÉNS PELO TEXTO1

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