Júlia de Arruda
Rodrigues
Costuma-se
propagar a ideia de que a violência sexual contra as mulheres é apenas uma
expressão da violência geral. Contudo, estudos e pesquisas mais acuradas sobre
o tema sugerem que essa é uma questão muito mais ligada às relações entre os
gêneros, pois as mulheres são as vítimas preferenciais desse tipo de agressão.
E
dados como os apresentados abaixo tomam proporções muito mais alarmantes se
considerarmos que as mulheres representam pelo menos 50% da população mundial.
·
Mulheres de 15 a 44 anos
correm mais risco de sofrer estupro e violência doméstica que de outros
infortúnios, como câncer, acidentes de carro, guerra e malária, de acordo com
dados do Banco Mundial.
·
Calcula-se que, em todo o
mundo, uma em cada cinco mulheres se tornará uma vítima de estupro ou de tentativa
de estupro no decorrer da vida.
·
1 bilhão de mulheres, ou uma
em cada três do planeta, já foram espancadas, forçadas a ter relações sexuais
ou submetidas a algum outro tipo de abuso.
·
20% das mulheres são alvo de
estupro.
Fontes:
http://www.onu.org.br/unase/sobre/situacao/
http://www.cfemea.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3466:dados-sobre-violencia-contra-as-mulheres-no-brasil-e-no-mundo&catid=215:artigos-e-textos&Itemid=149
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Entre
teorias feministas esse fenômeno passou a ser chamado de Cultura do Estupro, uma expressão polêmica, mas que expressa bem o
que tais estudos buscam denunciar: que a violência sexual contra a mulher é
reflexo de relações entre gêneros, produzidas e reprodutoras de processos
históricos e culturais que multiplicam os discursos sobre o sexo, a sexualidade
masculina e feminina e sobre a violência, nas mais variadas instâncias,
inclusive o Direito.
No
caso brasileiro, o Código Penal passou por várias modificações desde que entrou
em vigor, em 1942, mas a produção discursiva sobre a sexualidade ainda é uma
marca bastante forte em nosso ordenamento. Isso fica bastante claro quando
comparamos a forma como o legislador tipifica o crime de estupro e o de roubo:
Art. 213 -
Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção
carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato
libidinoso.
Art. 157 -
Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou
violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à
impossibilidade de resistência.
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Os
dois tipos penais tem bens jurídicos bem distintos (respectivamente, dignidade
e liberdade sexual, e patrimônio), mas em comum a exigência de emprego de
violência ou grave ameaça. Todavia, enquanto no crime de estupro o núcleo do
tipo penal é o verbo constranger, no
de roubo é subtrair, o que revela que
o legislador penal atribui muito mais objetividade a um delito contra o
patrimônio, que outro contra a dignidade e liberdade de uma pessoa em sua
esfera sexual. Enquanto o verbo subtrair
declara uma ação que não permite interpretações divergentes, o outro suscita todo
tipo de divagações.
Afinal,
o que significa constranger para os
legisladores e aplicadores do Direito?
Dentre os doutrinadores
jurídicos mais conhecidos, Rogério Greco[1] e Julio Mirabete e
Renato Fabbrini[2], nos dão algumas pistas:
Vimos, portanto, que o
estupro (art. 213 do CP) ocorre quando há o dissenso da vítima, que não
deseja a prática do ato sexual. No entanto, para que seja efetivamente
considerado o dissenso, temos de
discernir quando a recusa da vítima ao ato sexual importa em manifestação
autêntica de sua vontade, de quando, momentaneamente, faz parte do “jogo de
sedução”, pois que, muitas vezes, o “não” deve ser entendido como “sim”.
[...] Devemos aplicar, in casu,
aquilo que em criminologia é conhecido como síndrome da mulher de Potifar,
importada dos ensinamentos bíblicos. [...] Quem tem experiência na área penal
percebe que, em muitas situações, a suposta vítima é quem deveria estar
ocupando o banco dos réus, e não o agente acusado de estupro. [...]. A falta de credibilidade da vítima
poderá, portanto, conduzir à absolvição do acusado, ao passo que a
verossimilhança de suas palavras será decisiva para um decreto condenatório.
“É muito difícil que um homem sozinho, por maior
que seja sua superioridade física, possa manter conjunção carnal mediante
violência”, diz Fragoso. [...] A violência moral
deve ser demonstrada por outras provas (gritos, choros, notícia imediata a
parentes etc.), dispensando-se a perícia. Tratando-se de pessoa adulta, dotada de suficiente força para
oferecer resistência ou de pessoa
leviana, cumpre apreciar com redobrados cuidados a prova da violência moral.
[...] Exige-se que a vítima se oponha com veemência ao ato sexual, resistindo
com força e energia, em dissenso sincero e positivo. Não basta uma platônica ausência de adesão, uma recusa puramente verbal, uma oposição passiva e inerte ou
meramente simbólica, um não querer sem maior rebeldia.
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Da forma como
o legislador lei define o crime de estupro, a avaliação do consentimento possibilita,
e até mesmo exige, que os operadores do Direito questionem se a vítima ofereceu
ou não resistência suficiente ao
ataque, ou se sua vontade foi realmente
superada pelo uso da força ou ameaça. De outro lado, vítimas de roubo não
necessitam demonstrar que resistiram ao assaltante, nem se supõe que, ao
entregarem seus bens, consentiram na subtração do objeto.
Assim, torna-se
claro o que Brownmiller[3] denuncia, quando afirma que “A lei nunca
foi capaz de distinguir satisfatoriamente um ato sexual mutuamente desejado de
um ato criminoso de agressão sexual, forçada”, pois não se investiga apenas se
o bem jurídico (dignidade e liberdade sexual) foi atingido, e se isto foi feito
mediante o emprego de violência ou grave ameaça, sem avaliar o comportamento da
vítima e suas características pessoais.
O que se
observa é que as próprias noções de dignidade e liberdade sexual são ainda
grandes desafios para o Brasil e o mundo, evidenciando a necessidade inadiável
de que a produção e o ensino do Direito sejam
sempre acompanhados de estudos sobre as relações entre gêneros, a violência e
os discursos que compõem o que convencionamos, por ora, chamar de Cultura do Estupro.
Referências:
[1]
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. 8. ed. Niterói: Impetus, 2011. vol. III. p. p. 472, 473, 480 e 482.
[2]
MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal – Parte
Especial: arts. 121 a 234-B do CP. 28. ed. rev. e atual. até 4 de janeiro de
2011. São Paulo:
Atlas, 2011. p. 390 e 391.
[3] BROWNMILLER, Susan. Against Our Will: men, women and
rape. New York: Ballantine Books, 1993. p. 383 e 384.
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